O pior dos ladrões


Selda Pessoa

Procuro mais um pedaço de unha para roer, mas não encontro. Olho para minhas cutículas já machucadas. O júri vai votar e definir o veredito. Faltam poucos segundos para eu saber se a justiça será feita. Minha respiração está acelerada e tenho a impressão que consigo ouvir as batidas do meu coração. Cruzo e descruzo as pernas, aperto os dentes até doer o maxilar. E finalmente escuto o juiz anunciar - o réu é culpado. Não consigo conter o choro. Soluço alto, meu corpo balança involuntariamente, o ar entra e sai com força, fazendo barulho. Tenho a impressão de que minhas lágrimas vão inundar o local e afogar a todos, começando por mim. Me sinto consolada, embora não possa recuperar o que perdi.

Vivi repetidos assaltos. O roubo do que alguém pode ter de mais valioso. Verdade que, como tudo na vida, damos mais valor depois que perdemos. Também houve tortura. Muita tortura. Roubar algo precioso de alguém, fazendo isso através de um processo de tortura, é muito cruel. Quem sofre tamanha maldade precisa que o autor do crime pague pelo que fez. Daí meu alívio ao ouvir a decisão do júri. Daí meu choro interminável e desinfetante.

“O júri popular é previsto para um único conjunto de crimes, os dolosos contra a vida, sejam eles tentados ou consumados. Esses crimes são intencionais de homicídio, infanticídio, aborto ou participação em suicídio”. Foi o que li, até então não entendia muito sobre o sistema judiciário no Brasil. Os fatos se enquadraram em muitas coisas. Tentativa de homicídio, felizmente sem sucesso. Impressionante pensar de quantas formas se pode matar alguém. Poderia ter ocorrido um aborto, se houvesse uma gestação em curso. Com certeza “participação em suicídios”. Quantos esse maldito já causou? Agora acabou, ele foi condenado, passará o resto da vida na prisão. Não há pena de morte no Brasil, o que seria ainda mais justo. Ninguém mais sofrerá por causa dele. E fui eu que tive a coragem de denunciar, me sinto orgulhosa. As lágrimas acabam, um sorriso começa a surgir. Me sinto bem. E agora posso falar sobre ele. Sim, já consigo.

Ele é discreto, quase delicado. Vai se aproximando aos poucos, não chama a atenção quando chega. Demorei semanas para perceber que estava sendo seguida, cortejada. Ele se aproxima de você, ouve suas fraquezas e inseguranças, pergunta sobre os seus medos. E vai aos poucos entrando na sua rotina. Primeiro se apresenta. É sutil, você não leva a sério. Depois faz só uma visita e demora para aparecer a segunda vez. Até que chega numa noite tranquila, com uma agitação própria, e te faz pensar sobre o que nunca pensou antes. Então ele começa a vir com mais frequência. De repente você se dá conta de várias coisas, porque ele te fala, te mostra, você não teria visto sozinha. Você começa a desconfiar das pessoas próximas, fica cheia de dúvidas sobre o futuro, se questiona sobre o presente. E sente uma certa gratidão, as vezes uma sensação de aprendizado.

Ele então começa a vir todos os dias, você já não tem a opção de não recebê-lo. Começa a trazer coisas nocivas para sua casa, para sua cama. Ele é sutil, é difícil identifica-lo, culpa-lo. Ele passa a te atacar todos os dias. E você sente medo. Quando começa a anoitecer você já sabe que ele vai chegar, e é mais forte que você, te domina. Você não sabe como evitar, nem para quem pedir ajuda. Enfim ele te aprisiona e não te permite mais viver como antes.
Não sei quantas pessoas foram capturadas por ele. Lamento por todas e agradeço ter conseguido escapar. E agora o vejo ser algemado e preso, mesmo sem poder ver seu rosto. A justiça ainda existe.

Respiro fundo e decido dar uma volta. Lavo os olhos vermelhos do choro, limpo as lágrimas que secaram em meu rosto. Coloco a coleira em meu cachorro, o clima está perfeito para um passeio. Ele abana o rabo, estou feliz também. Com frequência imagino essa cena, que nunca vai acontecer. A verdade é que nunca pude acusá-lo.

Fui eu que o matei. Ele jamais seria capturado. Claro que não foi de uma vez. Fui estratégica. Planejei. Acabei com ele, um pouco por dia, como ele fez comigo. Fui melhor, mais sábia. Demorou, mas consegui. Aprendi com ele e fiz igual. Fiz melhor. Ele não percebeu e, quando se deu conta, era tarde demais. Tentou reassumir o controle, mas eu já era mais forte, já dominava a cena. Eu o assassinei. E o fiz sumir. Ele tinha a força e eu a sagacidade. Ele não me incomoda mais.

O sol já ameaça se por, deixando o céu bonito e vermelho. Passeio pela rua arborizada, observo a paisagem, medito. Calma, sem medo. Meu cão cheira tudo que vê, de vez em quando olha pra traz, parece sorrir para mim. Ficou muito tempo sem me ver assim. Se falasse sei que diria: “Que bom que passou”.

A justiça não será feita da forma tradicional. Mas eu acabei com ele. O pior dos criminosos, o ladrão do sono, deixou de existir.

voltar

Selda Pessoa

E-mail: selda.pessoa@icloud.com

Clique aqui para seguir esta escritora


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose