Um crime inusitado


Selda Pessoa

Finalmente o veredito foi anunciado. Ruben foi julgado culpado. Perplexo, seu advogado, Dr. Henrique, olhava-o com expressão de culpa. Como poderia imaginar? Um caso que parecia tão fácil. O juiz se retirou, pouco a pouco a sala foi ficando vazia. Ruben foi conduzido por policiais. Não foi algemado. A verdade é que os próprios agentes tinham dúvidas sobre o perigo que condenado representava.

Henrique saiu do tribunal debaixo do sol forte. Mesmo assim os flashes incomodaram seus olhos. Evitou os repórteres, mas sabia que ficaria conhecido como quem perdeu aquele estranho caso. Era difícil entender por que despertou tanta curiosidade da mídia e da população local. Cabisbaixo, entrou no estacionamento e pegou seu carro, tentando raciocinar sobre os próximos passos.

Ruben saiu da sala escoltado, para ser levado ao fim da sua liberdade, a não ser que o competente Dr. Henrique encontrasse uma outra saída. No corredor estavam Newton e Sandra. O homem parou em frente aos seus acusadores. Sandra tinha lágrimas nos olhos e ameaçou falar, mas as palavras não saíram. Newton disse “sinto muito”. Não havia expressão menos adequada para a situação. Os dois homens se encararam, estranhamente sem raiva. Os policiais apressaram Ruben e ele seguiu adiante.

Foi Sandra quem iniciou, não intencionalmente, a suspeita sobre o provável crime, meses antes. Estavam num final da tarde agradável, observando o por do sol pela parede de vidro do restaurante vazio, degustando um vinho rose gelado. Geralmente optavam pelo tinto, mas fizeram diferente daquela vez. Newton então contou que havia comprado um livro do autor que Sandra indicou – ela sempre mandava trechos dizendo o quanto via semelhança dele com Newton, na forma do escritor se expressar.

Sandra sorriu ao saber que sua fala teve esse nível de atenção do amado. Newton continuou dizendo o quanto o autor trazia percepções idênticas às dela, as vezes parecia ser a própria Sandra falando. Sandra estranhou. O autor a quem sempre se referiu, Ruben Camargo, falava sobre paisagens, sentimentos leves, crianças e plantas. Ela tinha consciência que suas ideias eram bem mais fervorosas e críticas. Mas Newton falou de alguns trechos e realmente era exatamente como ela pensava. Foi quando Newton mostrou pelo celular a foto da capa do livro. “Os muitos lados de tudo – Ruben Oliveira”. Não se referiam ao mesmo autor.

Desfeita a confusão sobre os nomes dos escritores, trocaram os livros alguns dias depois para lerem e discutirem, curiosos com a coincidência. E então as coisas começaram a parecer estranhas. Newton se reconheceu em cada trecho do livro. Aquelas palavras eram suas. No início podia ser coincidência, até que leu sobre o impecável fusca do pai que não podia ser tocado pelos filhos, o peixe cortado de uma forma especial no restaurante na montanha, os pés de lavanda ao sol. Havia algo errado.

Sandra tinha se surpreendido com o nome do livro, já que sempre defendia os muitos lados de todos os fatos. Mas a medida que começou a ler teve certeza que aquelas palavras foram todas ditas por ela, cada ideia, cada reflexão. Decidiram comprar outros livros dos dois autores e a coincidência continuava. Não podia ser acidental.

Após muitas conversas incômodas, concluíram que precisavam fazer alguma coisa. Os livros começaram a ser lançados pouco antes do relacionamento do casal, mas quando já conviviam e conversavam sobre muito do que estava escrito. Os dois autores estavam na lista de mais lidos no país. Com as ideias e palavras de Sandra e Newton. O casal se encontrava sempre nos mesmos dois ou três lugares. Gostavam de mesas afastadas das outras pessoas, mas permaneciam longas horas falando sobre os temas que se tornaram livros famosos. Era difícil imaginar como foram ouvidos e copiados, mas não restava dúvida.

Ainda por conta, começaram a investigar Ruben Camargo e Ruben Oliveira. Camargo não tinha fotos em suas biografias e nem entrevistas publicadas. Oliveira tinha um rosto conhecido e várias reportagens sobre o sucesso de seus livros. Em uma delas falou sobre seu processo criativo: “Algumas vezes sonho ou tenho uma ideia no meio do dia. Mas geralmente escuto as pessoas falando e crio a partir disso. Gosto de frequentar restaurantes e bares sozinho. Não presto atenção nas pessoas, mas algumas conversas chegam até os meus ouvidos e se tornam as histórias que escrevo. Não saberia descrever de quem vieram”. Essa afirmação confirmou para Sandra e Newton que não havia inocência, que estavam sendo espionados e que alguém estava lucrando ao custo da invasão de suas privacidades, que tanto valorizavam e cuidavam. Não tinham saída, precisavam agir.

Na era da invasão de redes sociais e roubo de dados corporativos, o casal estava sendo espionado da forma mais simples e primitiva, e com enorme competência. O que os incomodou não foi o lucro ou a fama do autor, mas saber que seus preciosos encontros não eram secretos, que sua troca tão preciosa não pertencia só aos dois, que em seus momentos de intimidade afetiva e intelectual não estiveram sozinhos. Não foram capazes de ignorar.

Dr. Ulisses era um advogado especialista em invasão de dados e trabalhava para empresas e celebridades atacadas por hackers e admiradores mal intencionados. Conhecido por ganhar todas as causas que defendia, apaixonado pela sua profissão e pelo seu trabalho, aceitou prontamente o processo dos dois desconhecidos públicos, com sua intuição apontando para a repercussão que o levaria aos flashes que tanto valorizava. Em poucos meses de investigação encontrou todas as evidências. Só havia a comprovação de uma situação em que o autor ladrão de ideias e palavras estivera no mesmo local do casal, uma padaria em que passou quando os dois jantavam. Mas somado aos textos publicados no site desconhecido de Sandra, que era uma tímida escritora em momentos de lazer, os e-mails e mensagens de reflexões trocadas pelo casal, claramente contada por Ruben como contos sob o sobrenome Camargo e crônicas como Oliveira, a acusação foi precisa e a decisão judicial inquestionável. Ruben, um homem sensível e bom com as palavras, querido pelos amigos e reconhecido no meio literário, foi preso por espionagem, invasão de privacidade, roubo de dados pessoais e copyright. Fim da liberdade de um ser humano que jamais estaria sob suspeita, o caso foi de grande repercussão pública, interesse de internautas e influenciadores, revolta de escritores conhecidos e de muitos nunca revelados. Dr. Ulisses se tornaria ainda mais valorizado no meio jurídico.

Sandra e Newton saíram do tribunal quando as coisas se acalmaram do lado de fora. Tiveram proteção judicial pela repercussão do caso. Com discrição entraram no carro e Newton dirigiu até a casa de Sandra, ambos em silêncio, reflexivos, perplexos. Nunca quiseram que a coisa tomasse tamanha proporção. E em cada olhar trocado com Ruben durante o processo, questionaram sua culpa. Mistérios da vida, tinham certeza agora de nunca terem sido espionados por aquele pobre homem e talentoso escritor. O casal não pode evitar as lágrimas, nem a dúvida, nem a culpa.

Precisaram de alguns dias para se recompor, até mesmo para quererem se ver ou se falar. Mas ao final do período de digestão dos recentes e polêmicos acontecimentos, Sandra propôs. Newton concordou, Dr. Henrique se aliviou, Dr. Ulisses se revoltou. Ruben aceitou.

A queixa foi retirada, o processo cancelado, Ruben libertado. E uma nova editora foi aberta, que logo se tornou reconhecida, assim como seus três sócios escritores: “Ideias roubadas - Editora de Contos e Crônicas”.

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Selda Pessoa

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