Tecendo - Noite fria


Selda Pessoa

Julia nunca teve filhos. Tinha medo que tirassem sua liberdade e atrapalhassem a ótima relação que tinha com o marido, Rafael. Sua grande paixão era o trabalho, o sonho que realizou e crescia a cada dia. Esse sonho começou com Augusta, a costureira mais antiga, trabalhando para produzir as roupas que fizeram a fama de Julia, no competitivo mercado da moda.

Era hora de fechar a oficina de costura. Todas as funcionárias já haviam ido embora, estavam somente Julia, Augusta e Nara, a gerente, que trabalhavam no novo projeto, para uma grande magazine. Julia observava as duas jovens.

Nara era inteligente e ambiciosa. Direta e objetiva, sorria pouco, nunca se lamentava e suas conversas eram quase sempre relacionadas ao trabalho. Julia percebia que a moça se espelhava nela, até a forma de se vestir estava cada dia mais parecida. Fazia perguntas sobre o sucesso da patroa e da empresa, sobre como cresceu seu antigo pequeno ateliê e se tornou fornecedora de importantes boutiques e lojas de departamento.

Julia observava também Augusta. Lembrava dela menina, ia trabalhar com a mãe que não tinha com quem deixá-la, e logo aprendeu a costurar. A agulha nas suas mãos tomava vida, deslizava nos tecidos e os transformava em peça belas. A vida a envelheceu cedo. Tinha traços e formas bonitas, que parecia se esforçar para esconder, se vestindo com simplicidade. Justo ela, artista das roupas mais bonitas que a oficina produzia. Engravidou cedo. Discreta, nunca contou o que houve com o pai da criança, e era visível seu esforço para conciliar o trabalho com a maternidade.

Dirigindo de volta para casa, Julia se esforçava para esquecer o que viveu alguns dias antes. Estava em sua casa, há poucos quarteirões da oficina, quando Rafael a chamou para ver as imagens nas câmeras de segurança. Não pôde acreditar, Augusta estava roubando a oficina. Sim, Augusta. Pegava linhas, agulhas, tesoura. Desligou e começou a embrulhar a máquina de costura. Julia se apoiou na mesa, respirando com dificuldade. Rafael se apressou para chamar a polícia. Tremendo, tirou o telefone da mão do marido e desligou. De pijama, como estava, pegou o carro e dirigiu para a oficina, ignorando os protestos de Rafael. Também não permitiu que ele fosse com ela.

Foram tantas as situações em que preferiu não intervir na gerência de Nara. Como quando a gerente informou que mandaria Augusta voltar de licença maternidade antes da hora, porque tinham confecções difíceis para os novos pedidos. Também quando se queixou da insistência da costureira em mudar seu turno, para poder cuidar da filha depois do horário da creche. Recordou do acidente com a filha de Augusta, felizmente não tão sério, ocorrido enquanto trabalhava. A viu chorando no dia seguinte, enquanto fazia o acabamento delicado de uma blusa.

Estacionou raspando a roda no meio fio, sequer desligou o carro. Colocou-se, ofegante, em frente de Augusta, que já deixava a oficina, segurando uma caixa e os últimos objetos furtados, enquanto um automóvel a aguardava em frente a porta. A moça não recuou ao vê-la. Julia enxergou o perigo, mas se manteve bloqueando a passagem.

- Leve o que quiser, Augusta – disse emocionada. Obrigada por tudo que fez por mim.

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Selda Pessoa

E-mail: selda.pessoa@icloud.com

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