Paradoxo


Selda Pessoa

Olho para ela começando a despertar. Suas curvas morenas, a pele macia, o corpo bem desenhado pela natureza, pela dança, pela yoga, pela disciplina. Eu me sinto esquentar, mas não quero acordá-la. Passo a beijá-la, ao que retribui, sonolenta. Logo me abraça com a mesma vontade. Deve haver na ciência uma explicação para esse tipo de conexão química, que supera as diferenças, os valores, a moral. Se sobrepõe a tudo isso e deixa claro o que de fato move o animal humano.

Lembro como começou. Primeira aula do curso de Comportamento e Consumo. Estávamos lá por razões e formações diferentes. Talvez por um jogo do destino, ou decisão de um Deus brincalhão, cheguei com a aula já iniciada, e o lugar que me esperava era ao lado dela. Sorridente e cheia de piadas, foi minha dupla em uma primeira atividade. Depois minha colega nos intervalos. Logo íamos mais cedo para um café e uma conversa ou ficávamos até mais tarde para uma cerveja após as aulas de quinta-feira. Desde a faculdade eu não tinha uma amiga, alguém com quem pudesse conversar de verdade, rir de qualquer besteira. O sentido dessa amizade justificava várias coisas e não colocava em conflito meu casamento. Sempre pude preencher minha agenda com novas curiosidades, cada hora um projeto ou um curso diferente, o que me fazia voltar para casa mais feliz.

Bia chegou a jantar em nossa casa. Também fizemos um happy-hour juntos um dia após a aula. A aproximação da minha nova amiga ao meu casamento fluiu bem; até me incomodei pela forma como ela se tornou o centro das atenções no primeiro encontro de nós três. Nunca esperei que nossa relação caminhasse para onde foi. Agora, com ela adormecida ao meu lado, saciada da fome que eu provoquei, me perdoo ao pensar que nunca houve a intenção, nem de trair, nem de ultrapassar a barreira segura da amizade ou dos valores que aprendemos. Ninguém provocou, ninguém planejou.

Aconteceu quando a convidei para um final de semana em nossa casa de praia. Não é incomum em meu casamento viajarmos separadamente. Daquela vez eu que estimulei sua viagem para Israel, o curso de Educação do Futuro, tinha também curiosidade para saber como seria, o que me ensinaria na volta. Planejei ir para o litoral com minha irmã e convidei Bia. Pensei que, tendo-a como companhia para minha irmã, eu poderia mergulhar e fazer minhas atividades solitárias no mar, sem culpa. Mas poucas horas antes da viagem, minha irmã teve um imprevisto - Bia e eu já estávamos na estrada.

Depois de um dia de sol e mar, algumas taças de vinho branco gelado na varanda, várias reflexões, conversas deliciosas e muitas risadas, aconteceu. Ninguém programou e ninguém evitou. Olhei para ela ao abrir a segunda garrafa de Chardonnay e a puxei para perto de mim. Ela veio sem resistir, nos beijamos ali mesmo. Fizemos amor no chão da sala, no sofá, acabamos na cama e acordamos sem culpa. De lá para cá, passamos por vários momentos, dúvidas, idas e vindas. E aqui estamos, nesta tarde nublada de sexta-feira.

Ontem foi aniversário de Gabriel. Saí com ele para jantar em nosso restaurante preferido, programa rotineiro de um casal. Na volta, ele brincou, falou que às vezes sentia ciúmes da minha amizade com a Bia. Não respondi, mencionando apenas a sorte que tinha por ter me casado com um homem de mente aberta, inteligente, engraçado. Comemoramos, foi uma noite gostosa, do aperitivo ao sexo, o sono tranquilo depois. E, ao mesmo tempo, eu lembrava que, mais cedo ou mais tarde, teria que trazer a verdade. Ou trazer Bia para perto de nós.

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Selda Pessoa

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