Nós gatos já nascemos pobres, porém...


Selda Pessoa

O sol começa a esquentar e o cheiro de comida, aos poucos, a sair das casas. O gato caminha pelos telhados, atento aos aromas e movimentos. No percurso usual, visita as casas onde costumam alimentá-lo: o homem ocupado, mãe e filha na casa arrumada, a moça que lhe dá petiscos e, finalmente, Dida e Pepe.

De cima do muro ele vê o homem, na casa onde mais cedo começa o cheiro. Através do vidro que nem se percebe, de tão transparente, o homem eventualmente olha para fora. Ao seu lado uma prateleira com livros, miniaturas de carro, um relógio, um jogo de xadrez. Ele fala ao telefone e ao mesmo tempo aperta o teclado com rapidez. Faz perguntas diretas com palavras educadas. O gato pula então na janela e o encara nos olhos. O homem se assusta um pouco e sorri.

Alguém abre uma fresta da porta do cômodo. O homem faz um sinal positivo com a cabeça.

- Espera aí, gatinho. Está quase na hora do almoço.

O homem desaparece e reaparece na porta da frente, vai para a garagem. O bichano o segue, sentindo o cheiro vindo de traz da casa, aroma de carne temperada e suculenta. O homem abaixa e o afaga. O gato se estica, passa entre suas pernas, ele sorri e enche o pote de comida. O cheiro é diferente, não é a carne que provoca fome. Come um pouco e o homem volta para a sala pequena e arrumada.

O gato dá a volta na casa, pelo corredor branco com plantas bem cuidadas. Pula de volta no muro, dele para o telhado. Caminha de telhado em telhado, o sol vai esquentando e os cheiros de comida ficam ainda mais fortes. Pula para a outra casa. Mãe e filha estão na frente do tanque de água azul, que chamam de piscina.

- Mamãe, o fofucho chegou!

- Claro, ele sabe que é hora do almoço. Pega lá a ração.

A menina desce da espreguiçadeira, onde até então brincava com as bonecas, enquanto a mãe lia. Corre para pegar o gato, que se assusta e recua. Ela respira e se aproxima mais devagar. Alisa a sua cabeça e segue com a mãozinha pequena até o rabo, que acaricia segurando e deslizando. A senhora sorridente começa a servir o almoço na varanda aberta e arejada.
Aroma suave de peixe e manteiga, cheiro insosso de vegetais. A menina enche o pote com as bolinhas marrons, o gato mia alto e ela ri. O gato come como sendo saborosas, tem um pouco de cheiro de frango.

O gato volta para o muro, de lá aos telhados. Encontra uma sombra, embaixo de uma árvore frondosa. Cochila até o sol começar baixar. Sobre as casas avista a rua de baixo, arvores pequenas e floridas, silêncio. Observa os telhados, alguns com telhas cor de terra, outros cinzas, mais claros, mais escuros. A temperatura fica mais amena, ele volta a passear.

Avista a casa da moça. Corre para lá, mas escuta o barulho do carro saindo. Vê pela janela o casal se beijando. Ela tranca a porta e se joga sobre ele, se agarram por cima dos livros, derrubam canetas e lápis que estavam na cama. O bichano pula para a janela e observa a cena.

- Aquele gato que você gosta, olhando a gente de novo - diz o rapaz.

- Deixa ele. Vem, já já meu pai volta!

Ele abaixa as alças finas da regata preta da moça. Ela arranca sua camiseta. Fazem vários barulhos, risadas e gemidos misturados, ruídos de papeis amassando sob o casal. O gato vê então o saco de petiscos, no criado mudo, ao lado da cama. Começam a exalar cheiros de suor e perfume. Porta trancada, janela fechada, gritos contidos. O gato continua olhando para eles, mas eles já não o enxergam mais.

Volta aos telhados, corre para onde seus instintos o levam, a casa mais afastada. No caminho, há locais com mais pessoas, passa escondido, pelo alto ou pelos cantos. Chega nas ruas com asfalto esburacado. Crianças descalças correndo e brincando. Sente o cheiro de álcool e suor, olha para o bar onde homens falam alto, bebem e jogam sinuca. Mulheres conversam na porta das casas geminadas, com portões enferrujados. Passa pelo beco, sobe no muro e de lá vai para a varanda pequena, que fica de frente para o rio poluído. Entra na casa. O bebê dorme no meio da cama velha de casal, travesseiros o aparando dos dois lados. O sofá onde dorme a mãe está vazio.

Parecendo saber onde encontrá-los, o gato sobe para o telhado - o sol está se pondo. Chega e lá estão eles, Dida e Pepe. Ele sentado ao colo dela, ouvindo-a e rindo de suas histórias.

- Oi, meu amor! Vem cá, Bola de Neve – chama a menina. Vem olhar o céu vermelho e depois vamos jantar.

- Quero pegar ele no colo...

- Ele não gosta, Pepe.

- Nós subimos naquela arvore grandona hoje, dá pra enxergar tudo de lá – conta Pepe para o gato, falando alto e apontando para longe.

O gato se aconchega encostando nas duas crianças, que o afagam observando o sol desaparecer aos poucos. No rio abaixo deles, as águas brilham e refletem a cena que veem no céu. Respiram com calma, o gato e as crianças.

Entram, Dida prepara a comida. Feijão temperado com linguiça, que ela serve com arroz. Primeiro para eles e logo depois enche o prato do gato. Ele parece sentir o aroma saboroso - o mesmo que exala dos pratos de Dida e Pepe.

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Selda Pessoa

E-mail: selda.pessoa@icloud.com

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