Difícil pra cachorro


Selda Pessoa

Ele vivia para ela, foi assim desde sempre. Quando ela se afastava por qualquer razão, ele se agitava, chegava a se desesperar. A verdade é que tinha muitos mais momentos de falta do que de presença. Ela o amava, ou era o que parecia quando estavam juntos. Mas ela trabalhava muito, fazia muito muitas coisas. Viagens, estudos, ginástica, amigos. Ideias, vontades.

Ele também gostava da filha que ela tinha. Cuidavam um do outro enquanto ela levava sua vida agitada. A pequena não se queixava, era acostumada assim. Brincava com suas bonecas, tinha a empregada à sua disposição. E às vezes a avó. Todos os dias a menina também a via sair, sem perguntar ou saber quando iria voltar. Aos dois, só cabia esperar. Era o preço do amor.

Mas um dia ela chegou e ficou. Ficou naquele dia, depois no seguinte, no outro também. E ao estar presente, parecia amá-lo mais. Aceitava a companhia dele em tempo integral. No início ele estranhou. Se mantinha atento, desconfiado. E ela continuava lá.

Ela fazia as mesmas coisas de antes, tinha a mesma agitação, mas por alguma razão que ele desconhecia, passou a estar com ele. E com a filha, e consigo mesma. No início andava de um lado para o outro, brigava com a menina por qualquer coisa, com ele também. A empregada foi dispensada, a avó nunca mais apareceu. No respeito imposto pela relação que tinham, ele apenas aceitou a boa sorte. E ela foi se tornando mais calma, já parecia gostar de estar ali.

Aquela passou a ser a nova vida dos dois. Dos três. Para ele, ela passou a ser totalmente dele.
Para a filha, totalmente dela. Ela continuava sendo da sua liberdade de ser, de pensar, de viver. Mas ficou definitivamente ali. E ele se acostumou. A verdade é que ele não era capaz de entende-la.

Até que houve uma conversa, que não foi com ele. Justiça seja feita, mesmo tão ocupada, ela explicava muitas coisas para a filha. Principalmente as subjetivas, das que ela sabia mais. A nova convivência pode tê-lo ajudado a compreende-la, porque conseguiu acompanhar o que ela dizia. A boa notícia era que ela continuaria lá, com eles. Mas sua fala parecia anunciar uma nova mudança. Por fim, ela disse:

- E podemos voltar a sair, filha. Mas precisaremos usar máscaras.

A menina sorriu e pegou a coleira. Ele, se vendo incluso no passeio, latiu feliz.

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Selda Pessoa

E-mail: selda.pessoa@icloud.com

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