A história de Inês


Selda Pessoa

O motorista atrasou cinco minutos para buscá-la. Inês não estava acostumada a esperar. Estava cansada, o dia havia sido intenso de reuniões e decisões. Ansiava por uma taça de vinho, em sua banheira de hidromassagem, de onde avistava a cidade grande que, olhando do alto, à noite, tinha uma paisagem de luzes, brilhos e copas de árvores. Entrou na Mercedes blindada, contendo a irritação, e viu o embrulho sobre o banco da frente. Embaraçado, o motorista explicou que era o presente de aniversário de sua filha, entregaria ao chegar, já que não pôde vê-la acordada pela manhã. Comprara o que a menina queria, massinha de modelar.

Massinha de modelar fora uma das atividades preferidas de Inês quando criança. A escola oferecia todos os tipos, cores, formatos. Tentou pensar em seus presentes de aniversário da infância. Aos seis anos, o que sua memória alcançava, ganhou um castelo, cujas portas se abriam com controle remoto para a entrada da carruagem da princesa, assim como as janelas para a entrada do sol. Tinha muitas bonecas, e a nova princesa veio junto ao castelo e à carruagem, era deslumbrante.

Carlos, pai de Inês, filho único, herdou uma pequena fábrica de seu pai. Com dedicação e competência ampliou a empresa e a tornou uma referência no mercado. Tinha formações importantes, que somadas à disciplina e ao tino para os negócios que aprendeu com o pai, garantiram o sucesso financeiro da família e possibilitou que os três fizessem variadas viagens pelo mundo nas férias.

A mãe de Inês, Catarina, brincava horas com a filha em sua infância. Tinha uma boutique de grife com algumas filiais, lucrativa pelas roupas elegantes e desejadas que oferecia. Contava com uma equipe que permitia que tivesse tempo livre para a filha, para a academia, para os cursos, os tratamentos estéticos. Catarina vinha de uma família de classe média, mãe professora, pai bancário. Estudou em escolas particulares e escolheu a universidade de moda. Teve alguns empregos e depois, com a ajuda do marido, começou seu próprio negócio.

Cristina, mãe de Catarina, foi criada pelo pai desde muito nova, quando sua mãe os deixou, sem nunca mais dar notícias. Invejava as amigas cujas mães se sentavam após a aula para ajudar nas lições. Não tinha dificuldades em aprender, só sentia aprender sozinha. Se tornou professora e compensou muitos alunos pela sua dor. Com Catarina esteve presente nos estudos, nos tombos da infância, nas decepções da adolescência, nos desafios da vida adulta e, claro, no nascimento e criação da neta.

A mãe que abandonou Cristina foi Marisa. Filha de nordestinos que migraram para a cidade grande, tinha um pai violento e uma mãe submissa, que nunca deixou o marido, apesar de todas as surras e bebedeiras. Também não protegeu os filhos de sua agressão cotidiana. Marisa tinha uma cicatriz no rosto, perto da orelha, que o cabelo cobria, de um corte mais fundo após ser jogada contra a quina da mesa - seu pai não estava feliz nesse dia. Nem em nenhum outro dia. Adulta, Marisa abandonou a filha, o marido e o risco de uma vida em família. Escolheu um homem bom para ser pai de Cristina. E deixou com a filha sua coragem de decidir.

Antônio, pai de Carlos, avô de Inês, nasceu em um bairro simples, caçula de muitos irmãos, mais familiares que comida na mesa e no mês. Pai e mãe dormiam junto aos filhos, nas camas improvisadas que tinham, e mal se encontravam durante os dias. Antônio começou a trabalhar ainda criança. Depois de anos de dedicação à fábrica e muita economia, pôde comprá-la de seu dono que não tinha mais idade para trabalhar. Casou-se com Liana, decidiram ter apenas um filho, achavam que assim seria melhor.

Liana foi deixada bebê na porta de uma igreja, com um bilhete escrito “cuide de mim”. Cresceu em orfanatos, muitas crianças, nenhuma atenção. Dava amor aos menores, desde que, aos cinco anos, se entendeu maior. Foi adotada com oito anos e ganhou a missão de cuidar da casa e dos filhos de uma família de boa renda. Dormia num quarto apertado e tinha roupas mais simples que os irmãos de quem cuidava. Pôde estudar em escolas particulares, fazer universidade e conhecer Antônio.

Da mãe de Liana nada se sabe. Um mendigo a viu abandonar a filha, não soube contar muita coisa. Só que ela ficou muito tempo ali agarrada ao embrulho que despacharia a seguir. E que, ao deixar, não saiu correndo, nem olhou para trás. Estava sozinha, com uma sacola pequena. Ele achou que ela também vivia em alguma rua por ali. Não se sabe a história dos seus pais. Também não se sabe a trajetória dos pais de Antônio e de tantos outros filhos, da mãe submissa ou do pai violento de Marisa, nem de seus antecessores.

Essa é apenas a história de Inês.

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Selda Pessoa

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